quinta-feira, 26 de março de 2009

A alienação fiduciária em garantia


"
Um contrato verbal não vale a tinta com que é assinado".
(Samuel Goldwyn, ator americano)





INTRODUÇÃO


Esta leitura trata do contrato de alienação fiduciária em garantia, seu passado histórico, seus vários conceitos, a depender das posições ideológicas (doravante a doutrina) daqueles que as formulam, os casos de extinção do instituto, sua natureza jurídica, o seu objeto, a forma de registro e a sua localização no Diploma do Direito Civil Brasileiro.



HISTÓRICO



Instituto de idade avançada, a alienação fiduciária em garantia teve seu nascedouro em momento posterior às calendas gregas, mais precisamente sob o “status quo ante” do que era o direito romano em seus primórdios, sob a autorização da Lei das XII (doze) Tábuas, no bojo da qual a 6ª (sexta) Tábua estabelecia que se alguém empenha a sua coisa em presença de testemunhas firmava convenção com força de Lei (RIZZARDO, 2008. p. 1297).

Detinham ainda os credores deste pacto o poder sobre a vida do devedor em caso de ocorrência do não-adimplemento material da dívida – débito –, além do apoderamento do cadáver para si.

A noção de desproporcionalidade nos negócios jurídicos da época era flagrante, reduzindo a dignidade da pessoa humana ao ínfimo valor de coisa material fungível, sendo a vida humana, portanto, mero motivo de chacota e desleixo.

Tal tradição institucional foi derrogada com o apogeu ao poder de Constantino, primeiro Imperador romano adepto da crescente e dinâmica fé cristã, a qual fez “tabula rasa” dos antigos deuses de Roma – Júpiter, entre outros -, além da conversão ao cristianismo daqueles que somente acreditavam em seus deuses lares[1].

Em tal ponto discorre Giorgio Forgiarini[2]:


"Importante que se diga que somente foi alterado esse costume a partir do alastramento da doutrina cristã e das mudanças oriundas do aparecimento do Estado Moderno, quando se transferiu o ônus pelo não adimplemento da dívida do corpo do devedor para o seu patrimônio material, sendo então facultado ao credor apoderar-se dos bens de propriedade do devedor assim que impagadas fossem as suas obrigações.” (Forgiarini, Giorgio, JUS NAVIGANDI. 2002. Aspectos relevantes da alienação fiduciária em garantia)[3].


Como se trata – a alienação fiduciária em garantia – de uma garantia real (Idem), possuía a fidúcia 3 (três) espécies no direito romano, parafraseando Paulo Restiffe Neto, “verbis”:
  1. fiducia cum amico: muito parecida com o comodato, em que um amigo entrega a outro uma coisa com transferência da propriedade, para dela fazer uso até ser pedida em restituição;

  2. fiducia cum creditore: em que o devedor, por força do contrato, transfere a propriedade da coisa do credor, em garantia do pagamento de uma dívida, comprometendo-se o credor a retransmitir a propriedade ao devedor após o recebimento do que lhe é devido;

  3. fiducia remancipationis caus: pacto pelo qual o paterfamilias vende um filho a outro paterfamilias, com a obrigação assumida por este de libertá-lo em seguida, de forma tal que se obtenha o fim visado, que é a emancipação do filho[4].

O NEGÓCIO FIDUCIÁRIO



O negócio fiduciário não deixa de ser um negócio jurídico, sendo-lhe aplicada – na espécie -, quanto à sua classificação de relação jurídica contratual, uma bilateralidade quanto à carga de obrigações que conferem-se a ambas as partes; onerosidade real frente ao objeto e uma onerosidade típica nominada no que se refere ao acervo patrimonial (VENOSA, 2003, pp. 392-413).


Avançando no que se refere ao negócio jurídico fiduciário, Pontes de Miranda, com a percuciência rotineira, dá seu parecer acerca da matéria, “verbis”:


“De acordo com Pontes de Miranda, sempre que a transmissão tenha um fim que não seja a transmissão mesma, de modo que ela sirva a negócio jurídico que não venha a ser de alienação àquele a quem se transmite, diz-se que há fidúcia, ou negócio jurídico fiduciário” (MIRANDA, 1954, p. 123). [5]


Como de forma cotidiana, o negócio jurídico, quando ostensivo e externo, implica, por via de conseqüência, a transmissão, e quando ocorre, vindo acompanhado do negócio implícito, indireto e encoberto, tem-se a formação da relação jurídica fiduciária, melhor ainda, têm-se a realização do negócio fiduciário (RIZZARDO, 2008. p. 1298).


ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA


A alienação fiduciária em garantia é nada menos que a transferência, feita pelo devedor ao credor, de certa propriedade resolúvel; sendo sua posse indireta e de um bem infungível, como forma de garantia do débito, resolvendo-se o direito do adquirente com o adimplemento da obrigação, em outros dizeres, com o pagamento da dívida garantida.[6]


Pulando da fase de feitura para a fase de execução do contrato, ante à proibição do pacto comissório, se o débito não for pago no vencimento, o devedor deverá vendê-lo então a terceiros, não estando – o devedor- sujeito à execução judicial; o fiduciário poderá intentar a ação executiva ou o executivo fiscal contra a figura do fiduciante, contra seus avalistas ou credores, hipótese em que o credor poderá fazer com que a penhora recaia sobre qualquer bem do devedor, com a exceção dos bens impenhoráveis, em consonância com a inteligência do que dispõem os artigos 648 e 649 do CPC. (Idem).


Seguindo a mesma linha de raciocínio, a extinção da propriedade fiduciária ocorrerá com:
  • a extinção da obrigação;

  • o perecimento da coisa alienada fiduciariamente;

  • a renúncia do credor;

  • a adjudicação judicial, remição, arrematação ou venda extrajudicial;

  • a confusão;

  • a desapropriação da coisa alienada fiduciariamente;

  • o implemento de condição resolutiva a que estava subordinado o domínio do alienante.

A alienação fiduciária em garantia constitui-se em direito real de certa garantia, o qual o devedor fiduciário, ao tornar-se o depositário e o então possuidor direto, o credor, então no caso de inadimplemento contratual fiduciário por parte de devedor, satisfará seu crédito devido no caso de venda da coisa, ressarcindo aí os prejuízos causados, ao contrário, dá-se a solução com o pagamento integral da dívida, sentindo-se na então obrigação de transferir a coisa ao devedor fiduciário (RIZZARDO, 2008. p. 1300).

O instituto da alienação fiduciária em garantia teve o ingresso no cenário nacional a partir do momento ocorrente da Sanção da Lei n° 4.728/65, plasmando-se ao texto da Lei de Mercado de Capitais (Idem), tendo como escopo a função de fornecer garantia real para os contratos de financiamento de forma direta ao consumidor na aquisição de utilidades e bens móveis duráveis, ocorrendo com o passar do tempo interpretação extensiva para outros ramos do direito, tais como o financiamento de bens imóveis, sob a regulamentação da Lei n° 9.514/97, abarcando e açambarcando o Sistema Financeiro Imobiliário propriamente dito.

Ainda no que concerne ao tema, o autor faz menção clara do tema na inteligência do art. 66 - da Lei n° 4.728/65 -, “verbis”: “Nas obrigações garantidas por alienação fiduciária de bem móvel, o credor tem o domínio da coisa alienada, até a liquidação da dívida garantida” (IDEM, IBIDEM).


Em cenário histórico conturbado, houve o surgimento do Decreto n° 911/69, que inseriu normas que ocuparam o espaço do art. 66, que vinham anteriormente esparsas em artigos da Lei n° 4.728/65.

A organicidade dinâmica do Direito tratou de “remendar” o assunto com as mudanças advindas agora da Lei n° 10.931/04[7], corroborando a extensão do instituto para o financiamento de direitos sobre coisas móveis, possibilidade de uso para garantia de créditos fiscais e previdenciários. Além dos requisitos da Lei supracitada, há também a possibilidade de cláusula penal, taxa de juros, índice de atualização monetária (caso haja), assim como as demais comissões e encargos (a depender da situação fática).

O nosso Código Civil de 2002, posterior ao “Código Beviláqua”, cuidou de tratar da matéria que regulamenta a alienação fiduciária, encontrando espaço em seu art. 1.361: “Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”.


Observa-se a mais não poder que, no contrato que rege o negócio fiduciário, a propriedade, sendo resolúvel, ou seja, o devedor ainda não é dono – proprietário da coisa – e sim mero depositário, tem por objeto garantir a arrolagem de uma dívida (crédito), o qual uma vez satisfeito, faz com que a coisa - propriedade – fique em mãos do alienante - devedor (RIZZARDO, 2008. p. 1301).


NATUREZA DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA


Ao que já fora exposto no art. 1.361, de nosso Código Civil de 2002, a garantia que o devedor de uma dívida assumida perante um credor, decorrente de um contrato com as características já anteriormente abordadas, é a transferência de bens móveis, desde que não sejam inalienáveis (artigos 648/649 do CPC) como garantia de pagamento de dívida ainda não resolvida (RIZZARDO, 2008. p. 1302).

A assertiva de que o núcleo do contrato em questão é “a garantia” é verdadeira. Há no caso, tratando-se de inadimplemento da dívida, a autorização por parte do credor a vender os bens para saldar com a venda o pagamento de seu crédito. É a transferência da propriedade do devedor-fiduciário para as mãos do credor-fiduciário.


O OBJETO DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA


A corrente dominante de pensamento atualmente trata que o objeto da alienação fiduciária vai além dos bens móveis, descordando-se neste ponto Antônio Chaves, o qual afirmara que tal instituto incidia tão somente sobre os bens móveis, tanto fungíveis como infungíveis.

A incidência da alienação fiduciária corrobora também os direitos reais, direitos sobre coisas imateriais e a assunção de obrigações abstratas, embora o “Novo” Código Civil de 2002 ampare, à primeira leitura, somente os bens móveis (RIZZARDO, 2008. p. 1304).


A FORMA DE SE REGISTRAR A PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA.


O contrato de alienação fiduciária não exige a possibilidade de dispensa de prova escrita, embora haja alguns autores que considerem a idéia de que se prova a celebração do contrato invocando-se os meios de prova existente no art. 212, do “Novo” Código Civil de 2002.

Não cabe nesta leitura oferecer terapêutica a esta problemática.

O registro do contrato de alienação fiduciária é feito no Cartório de Títulos e Documentos (RIZZARDO, 2008. p. 1307). O registro em estudo é celebrado por instrumento público ou particular, servindo, realizadas as formalidades de praxe, como título hábil para aquele que a possui (Idem). Isto é realizado no domicílio do devedor[8].

Em se tratando de veículos automotores, tal registro dá-se com a averbação da propriedade fiduciária, sendo dispensa a necessidade do registro em Cartório de Títulos e Documentos (Idem, ibidem).

A inteligência do art. 1.362 do “Novo” Código Civil de 2002 brasileiro elenca o rol que deve conter um contrato de propriedade fiduciária.

“Art. 1.362. O contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, conterá:

  • o total da dívida, ou sua estimativa;

  • o prazo, ou a época do pagamento;

  • a taxa de juros, se houver;

  • a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação.”[9]


CONCLUSÃO

O contrato de alienação fiduciária constitui instituto jurídico que atravessou o tempo e a história, sendo ainda hoje a tônica por meio da qual são resolvidas as lides ocorrentes, cuja roupagem nos enceta a tratar a res (coisa) com valor pecuniário, como garantia de solução da dívida, sendo o requisito ensejador a conclusão do contrato por meios pacíficos e, na maioria das vezes, feito de forma extrajudicial.



BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:



CENTRAL JURÍDICA. Sítio: http://www.centraljuridica.com/doutrina/119/direito_civil/alienacao_fiduciaria_em_garantia.html

CRETELLA NETO e CRETELLA JÚNIOR, 1.000 perguntas e respostas de Direito Civil. Ed. Forense 2006. p 11.

FORGIARINI Giorgio. JUS NAVIGANDI. 2002. Aspectos relevantes da alienação fiduciária em garantia. http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3108, 06.2002.

RIZZARDO, ARNALDO. Contratos, 8ª Edição. Ed. Forense, 2008. pp. 1296-1309).

SÍTIO PLANALTO http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.931.htm%23art55

SÍTIO PLANALTO: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm

VENOSA, SÍLVIO DE SALVO. Direito Civil. Terceira Edição. Vol. 2; 2003, p. 392-413.



Notas:




[1] Para efeitos de curiosidade, tais registros foram feitos pelo escriba Lactâncio, o qual registrou o Édito de Milão, pacto político feito entre Lactâncio e Licínio, o qual oficializou a religião cristã no Império Romano – Museu de Roma.
[2] Acadêmico de Direito na UNIFRA/RS.
[3] Para maiores informações, acesse o sítio: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3108
[4] ARNALDO RIZZARDO apud PAULO RESTIFFE NETO. Garantia fiduciária, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1976, 2ª Ed., p.2
[5] ARNALDO RIZZARDO apud PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, vol. III, Borsoi Editor, Rio de janeiro, 1954, p. 123.
[6] Para maiores informações, acesse o sítio: http://www.centraljuridica.com/doutrina/119/direito_civil/alienacao_fiduciaria_em_garantia.html
[7] Para maiores informações, acesse o sítio: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.931.htm#art55
[8] O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece sua residência com ânimo definitivo (CRETELLA NETO e CRETELLA JÚNIOR, 2006. p 11).
[9] Para maiores informações, acesse o sítio: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm

AlibiJus